quinta-feira, 7 de agosto de 2014

As hastes do ventilador



Limpo as hastes do ventilador quando de repente me vem à lembrança o meu pai. Não são pensamentos doces e agradáveis, mais ao contrário, sombrios, tristes, solitários e angustiantes. Todos esses adjetivos sem a mínima culpa de cometer excessos de linguagem.

Meu pai – recordo frases isoladas no tempo e no espaço. Isso é comum em minha cabeça -, ele nos mandou, certa vez, limpar os ventiladores, que não esperássemos sempre por ele. De fato, é engano esperarmos, com freqüência, pelas pessoas que nos são fundamentais. Imprescindíveis. Pois um dia, assim, num piscar de olhos, num pulsar de sangue, num instante imperceptível, num avançar milimétrico de um ponteiro... em um segundo, basta que se esteja vivo, o sopro de vida se esvai.

Essas pessoas – essas – imprescindíveis e fundamentais por quem esperamos, com freqüência, elas deixam de ser o que foram uma vez. Deixam de limpar os nossos ventiladores porque o sopro de existência escapou o corpo, a Terra, os brilhos nos olhos.

Já não havia brilho nos olhos do meu pai. E fazia um certo tempo.  Nem tanto num pulsar de sangue, nem tanto num instante imperceptível de um avançar milimétrico do ponteiro. As evidências estavam ali. Mas a esperança não me deixava vê-las no espaço de tempo real.

O sopro ia se esvaindo aos poucos. O brilho ia se apagando devagar.

Entre uma brecha e outra por onde passa o vento, esfregando a poeira acumulada com um pano úmido, como meu pai ensinara, penso, assim como quem recebe, como quem é vítima, como quem é alvo, passiva das conseqüências de um pensamento produzido por outra que não eu mesma, quais teriam sido os últimos sentimentos dele.

Se eu pudesse escolher, se eu pudesse evitar, se estivesse ao meu alcance eu não pensaria isso. Mas penso. Como quem é alvo de uma flecha, como quem está de mãos atadas, como quem é atingida por uma bala perdida. Passiva de qualquer defesa, penso. E me sinto estilhaçada: o que ele teria sentido nos últimos dias de vida?

Parece que ele pressentia algo. Meu pai chorou duas vezes. Em minhas memórias foram duas: no enterro do pai – meu avô – e no último dia dos pais pelo telefone. Eu em Recife, ele em Salgueiro: “feliz Dia dos Pais, pai eu te amo!” e ele chorou, emudeceu. Primeiro choro dele que não era em um velório, mas parece que prenunciava algo fúnebre e atestava a angústia. O que sonhara nesses meses antes de morrer que lhe angustiava tanto? O que se passava em sua cabeça?

Eu não quero, mas continuo pensando. Indefesa. Medrosa do que possam ter sido esses últimos dias. Que espelho ele encarou? Que fantasma ele viu? Ele sabia. Sentia que o sopro se dissipava. E nada deve ser mais aterrador que isso.

Se eu não tivesse tirado a poeira do ventilador. Se alguém o tivesse limpado antes de mim. Se... se... quem sabe... Talvez as lembranças permaneceriam adormecidas ou essa flecha certeira – pensamento – não me acertaria o centro: Ele sofreu? , um tanto pergunta, um tanto afirmativa.

...

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Ensaio sobre a Cegueira

Umas divagações desorganizadas, às vezes até bobas, sobre a cegueira, provocadas pelo livro Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. 
A leitura, a seguir, está sendo complicada até para mim mesma que escrevi. Mas, sem dúvida, é um registro bom de se encontrar, na hora da faxina. 




Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Livro dos Conselhos







A desdentada por Saramago

Mais uma resenha de alguns anos atrás, não sei quantos. Saramago ainda era vivo quando li As Intermitências da Morte e minha mãe ficou preocupada porque eu estava lendo um livro sobre a morte. Não sabia ela que, na verdade, o tema era a vida, desse jeito louco, contraditório e, muitas vezes insuportável, mas que dá sempre para transformar em uma grande piada, sem sentido.

Saramago foi um homem encantador e fiquei apaixonada por ele. 

"...esse momento mágico havia sido engolido, desfeito pelo momento seguinte."

"As dissonâncias também fazem parte da música, minha senhora...".





O Caçador de Pipas

Muito tempo sem postar no blog. Ando um pouco travada... sem inspiração. Esta semana fiz uma faxina no quarto e encontrei algumas resenhas feitas por mim, de livros que li. Impressões e sensações. Não me perguntem a data. Não faço a mínima ideia. Talvez uns quatro anos. Adorei reencontrá-las e me senti encorajada a resenhar todos os livros que ler nesta vida!






terça-feira, 8 de abril de 2014

Quem lhe ensinou a andar de bicicleta?



Ilustração de Uiara Coelho, especialmente, para esta crônica.



Uma das pessoas mais importantes de sua vida estava lá, naquele dia de sábado, muita luz e calor. O céu infinito. Um azul claro, sem nuvens. Compartilhava, com você, medo e desejo, insegurança e vergonha. E essa, que é uma das pessoas mais importantes de sua vida, caminhava rápido, ao seu lado, segurando a cela e o guidão de sua primeira bicicleta, que não, necessariamente, era nova, pois, em muitos casos, era um modelo ultrapassado, herdado de um irmão mais velho.

Tinha muita gente torcendo pela sua conquista. A rua inteira ao redor, gritava “vai” e provocava, em você, um misto de motivação e medo de decepcionar. E uma pessoa fundamental, em sua vida, deixou o descanso do fim de semana para participar de uma aventura que não era dela porque acreditava no seu potencial para alcançar o equilíbrio, a estrada e as longas distâncias.

Aprender a andar de bicicleta já foi algo importante na vida de uma criança. Era uma espécie de certificado de sua capacidade para a superação, principalmente, dos próprios medos, e lhe conferia habilitação para segurar a cela e o guidão para outras crianças.

Quem lhe ensinou a andar de bicicleta?

Essas, provavelmente, são pessoas muito importantes na sua história porque lhe ensinaram sobre superação, coragem e confiança, tanto em si mesmo, quanto nos outros.

Creio que relembrá-las é resgatar-se. É trazer à tona o poder de realização que, com o passar dos anos e a chegada da vida adulta, vamos oprimindo em nosso íntimo.

Tudo é símbolo. Aprender a andar de bicicleta é um símbolo. Estou em busca desse resgate simbólico. Espero voltar. Quero alcançar umas longas distâncias em novas estradas, consciente e confiante em meu equilíbrio. E, claro, quero estar apta para segurar a cela e o guidão dos amigos (e inimigos), se for necessário.



Dedicado a Silvana, Joaquim Cícero, Lourdinha Rocha e Graça com quem aprendi a andar de bicicleta. 

sábado, 8 de fevereiro de 2014

BOM DIA, AMOR. TRAZ PÃO. BJ.TE AMO.

Ilustração de Java Araújo



O amor existe. Da forma mais trivial possível. É preciso entender isso. Geralmente, não é intenso, mas é tranquilo. Seguro. É como um porto, local de partida e chegada dos navios. É a âncora que impede que a água do mar leve a embarcação sem controle e sem destino. É o doce ninho. Quentinho e confortável, mas modesto. Esqueça os lençóis vermelhos de seda. A mulher sensual que você conheceu, no bar, em um sábado à noite. A namorada, sempre depilada. As lingeries rendadas e provocantes. Fio dental é muito desconfortável. Lycra é quente, provoca alergias e corrimentos. Não faz bem à saúde vaginal. Aliás, esqueça tudo o que você viu nos filmes pornôs. Em Malhação. Na novela das oito. Separe, ficção de realidade. E não espere muita emoção de um buquê de flores. De um jantar à luz de velas. De uma declaração pública. Eu pensava que era como nos filmes, que passear de barquinho com um cara lendo poesia para você, era o êxtase. Mas, não senti o êxtase e caí na real. Parei de fantasiar. E, só para finalizar a lista, sabe aquele ator, abdômen de tanquinho, braços fortes, rosto perfeito, que faz propaganda de cueca? Desista. O amor tem barriguinha saliente, cabelo assanhado e cara amassada. Dorme de maquiagem e acorda com o rímel escorrendo embaixo do olho. Usa calcinha de algodão. Tem um hálito desagradável quando acorda. Lava louça. Varre casa. Limpa banheiro. Engorda. Tem TPM. Tem depressão. Tem mau-humor.  E tem muitas responsabilidades. Mas, a característica fundamental do amor é a trivialidade. E vou dizer a inspiração para essa conclusão. Recebi um torpedo, por engano, precisamente, no dia 30 de agosto, às 8:20 da manhã. Em caixa alta. BOM DIA, AMOR. TRAZ PÃO. BJ.TE AMO. Logo, percebi que não era para mim. E, mesmo assim, fiquei super-feliz.  Era uma amiga do colégio, mãe de dois filhos. Quase não nos vemos. Infelizmente, nos distanciamos pelos compromissos diários, escolhas, rumos que a vida toma. Embora o carinho permaneça. A mensagem, claro, era para o marido. Respondi, dizendo que era engano, senão ela e as crianças iam ficar sem café da manhã. Não sei se, nesse dia, o pão chegou a tempo. Se é que chegou. Só, sei que, nesse dia, ficou mais compreensível, para mim, que o lindo de amar é simples. E trivial.



Último Romance - Los Hermanos



sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Maternidade


Ilustração de Uiara Coelho. Ela pinta com blushes, sombras e batons.  



A solidão da casa e o vento frio na varanda convidaram-na aquele sentimento. A noite estava acolhedora, tanto quanto a cadeira de balanço bem posicionada em frente ao jardim. Os botões de rosas abriam-se. Ao mesmo tempo, a intuição de ser mãe desabrochava nos seus pensamentos. Era respirar profundamente, fechar os olhos e sentir a maternidade dentro do útero.

A criança não nascera, mas já fora gerada em seu instinto de amar.  Cuidadosamente, acomodou esse filho imaginário entre os seios que um dia o amamentariam e sentou-se na balançadeira. Cantou para o rebento, ainda sem nome, canções falando de beleza, de natureza, de inocência. Com a voz leve. Feminina. Materna.

O abraço era de cumplicidade. Embora a criatura não estivesse materializada em seus braços, através de uma forma visível, o abraço existia e estava dentro daquele corpo de mulher de vinte e poucos anos, junto com o repertório musical de ninar, o acalanto, as renúncias e os ensinamentos sobre Deus. Todos eles, ansiosos por aflorarem em totalidade e completude.

- Como seria gostoso sentir o peso de uma criatura na barriga! E andar devagar, pacientemente, pois toda espécie de espera é uma grande prova de amor. E quanto saboroso seria preservar-se pelo fato de guardar em seu corpo um outro corpo. Indefeso. Ela o defenderia. O cuidaria incansavelmente. – Aconchegava ao peito os pensamentos, com mais contato. Pele sobre pele. Como se fosse um bebê.

Cantou até a criança dormir. Dormiu. Puro e acarinhado. Quem a visse, naquela sala, pensaria vê-la sozinha. Mas uma mulher, durante seus momentos de desabrocho, terá alimento no seio, inquietação no ventre e estará sempre acompanhada dos seus filhos. Mesmo não nascidos.  


O Rio - Marisa Monte

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Libertar-se do compromisso carrasco de ser feliz

"Contemplação" - nankin e lápis de cor sobre canson (2008)


A felicidade é silenciosa. Discreta. Não grita para o mundo inteiro ouvir.

A vida inteira achei que felicidade e êxtase eram a mesma coisa. Extravasamento. Transbordar.
Mas aprendi com o tempo, o passar dos anos e todos os momentos de dor, que felicidade não se estampa. É algo muito íntimo e particular.

A felicidade só se conjuga no tempo presente. No passado, é sujeito inexistente. No futuro, é verbo intransitivo.

Transita no hoje. No agora. Em trânsito permanente. Um contraditório ‘permanente’ que pertence exclusivamente ao hoje. No já. No aqui. Da forma mais trivial, simples e humana.
Fosca. Opaca. Leve. Tranquila. Sem dilatação de pupila.

A gente tem pressa de ser feliz e sonha em viver uma grande história de amor e acha que o clímax é a meta e confunde intensidade com desespero e desespero com felicidade. Mas o apogeu é sucedido pela queda.  E é mais fácil aprender sobre a felicidade com o declínio.

Um indefinível calmo e manso. Sentimento de autonomia e liberdade. De despretensão.

Desconstrução de aparências, sucessos, conveniências, cargos, títulos, do tempo...

Não quero ser melhor que ninguém. Quero ser.

Nem quero fazer de uma forma genial. Quero fazer, sem tensão, aceitando e respeitando os meus limites.

Não sou especialista em felicidade. Nem quero ser. Para mim, felicidade e tempo são duas obsessões destrutivas.

A palavra 'felicidade' traz consigo tensão, cobrança, aparência. Obrigação. Fantasia. Ficção. E também arrasta uma corrente muito pesada chamada 'competitividade'.

Libertar-se do compromisso carrasco de ser feliz, contraditoriamente, já é ser feliz.