sábado, 8 de fevereiro de 2014

BOM DIA, AMOR. TRAZ PÃO. BJ.TE AMO.

Ilustração de Java Araújo



O amor existe. Da forma mais trivial possível. É preciso entender isso. Geralmente, não é intenso, mas é tranquilo. Seguro. É como um porto, local de partida e chegada dos navios. É a âncora que impede que a água do mar leve a embarcação sem controle e sem destino. É o doce ninho. Quentinho e confortável, mas modesto. Esqueça os lençóis vermelhos de seda. A mulher sensual que você conheceu, no bar, em um sábado à noite. A namorada, sempre depilada. As lingeries rendadas e provocantes. Fio dental é muito desconfortável. Lycra é quente, provoca alergias e corrimentos. Não faz bem à saúde vaginal. Aliás, esqueça tudo o que você viu nos filmes pornôs. Em Malhação. Na novela das oito. Separe, ficção de realidade. E não espere muita emoção de um buquê de flores. De um jantar à luz de velas. De uma declaração pública. Eu pensava que era como nos filmes, que passear de barquinho com um cara lendo poesia para você, era o êxtase. Mas, não senti o êxtase e caí na real. Parei de fantasiar. E, só para finalizar a lista, sabe aquele ator, abdômen de tanquinho, braços fortes, rosto perfeito, que faz propaganda de cueca? Desista. O amor tem barriguinha saliente, cabelo assanhado e cara amassada. Dorme de maquiagem e acorda com o rímel escorrendo embaixo do olho. Usa calcinha de algodão. Tem um hálito desagradável quando acorda. Lava louça. Varre casa. Limpa banheiro. Engorda. Tem TPM. Tem depressão. Tem mau-humor.  E tem muitas responsabilidades. Mas, a característica fundamental do amor é a trivialidade. E vou dizer a inspiração para essa conclusão. Recebi um torpedo, por engano, precisamente, no dia 30 de agosto, às 8:20 da manhã. Em caixa alta. BOM DIA, AMOR. TRAZ PÃO. BJ.TE AMO. Logo, percebi que não era para mim. E, mesmo assim, fiquei super-feliz.  Era uma amiga do colégio, mãe de dois filhos. Quase não nos vemos. Infelizmente, nos distanciamos pelos compromissos diários, escolhas, rumos que a vida toma. Embora o carinho permaneça. A mensagem, claro, era para o marido. Respondi, dizendo que era engano, senão ela e as crianças iam ficar sem café da manhã. Não sei se, nesse dia, o pão chegou a tempo. Se é que chegou. Só, sei que, nesse dia, ficou mais compreensível, para mim, que o lindo de amar é simples. E trivial.



Último Romance - Los Hermanos



sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Maternidade


Ilustração de Uiara Coelho. Ela pinta com blushes, sombras e batons.  



A solidão da casa e o vento frio na varanda convidaram-na aquele sentimento. A noite estava acolhedora, tanto quanto a cadeira de balanço bem posicionada em frente ao jardim. Os botões de rosas abriam-se. Ao mesmo tempo, a intuição de ser mãe desabrochava nos seus pensamentos. Era respirar profundamente, fechar os olhos e sentir a maternidade dentro do útero.

A criança não nascera, mas já fora gerada em seu instinto de amar.  Cuidadosamente, acomodou esse filho imaginário entre os seios que um dia o amamentariam e sentou-se na balançadeira. Cantou para o rebento, ainda sem nome, canções falando de beleza, de natureza, de inocência. Com a voz leve. Feminina. Materna.

O abraço era de cumplicidade. Embora a criatura não estivesse materializada em seus braços, através de uma forma visível, o abraço existia e estava dentro daquele corpo de mulher de vinte e poucos anos, junto com o repertório musical de ninar, o acalanto, as renúncias e os ensinamentos sobre Deus. Todos eles, ansiosos por aflorarem em totalidade e completude.

- Como seria gostoso sentir o peso de uma criatura na barriga! E andar devagar, pacientemente, pois toda espécie de espera é uma grande prova de amor. E quanto saboroso seria preservar-se pelo fato de guardar em seu corpo um outro corpo. Indefeso. Ela o defenderia. O cuidaria incansavelmente. – Aconchegava ao peito os pensamentos, com mais contato. Pele sobre pele. Como se fosse um bebê.

Cantou até a criança dormir. Dormiu. Puro e acarinhado. Quem a visse, naquela sala, pensaria vê-la sozinha. Mas uma mulher, durante seus momentos de desabrocho, terá alimento no seio, inquietação no ventre e estará sempre acompanhada dos seus filhos. Mesmo não nascidos.  


O Rio - Marisa Monte

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Libertar-se do compromisso carrasco de ser feliz

"Contemplação" - nankin e lápis de cor sobre canson (2008)


A felicidade é silenciosa. Discreta. Não grita para o mundo inteiro ouvir.

A vida inteira achei que felicidade e êxtase eram a mesma coisa. Extravasamento. Transbordar.
Mas aprendi com o tempo, o passar dos anos e todos os momentos de dor, que felicidade não se estampa. É algo muito íntimo e particular.

A felicidade só se conjuga no tempo presente. No passado, é sujeito inexistente. No futuro, é verbo intransitivo.

Transita no hoje. No agora. Em trânsito permanente. Um contraditório ‘permanente’ que pertence exclusivamente ao hoje. No já. No aqui. Da forma mais trivial, simples e humana.
Fosca. Opaca. Leve. Tranquila. Sem dilatação de pupila.

A gente tem pressa de ser feliz e sonha em viver uma grande história de amor e acha que o clímax é a meta e confunde intensidade com desespero e desespero com felicidade. Mas o apogeu é sucedido pela queda.  E é mais fácil aprender sobre a felicidade com o declínio.

Um indefinível calmo e manso. Sentimento de autonomia e liberdade. De despretensão.

Desconstrução de aparências, sucessos, conveniências, cargos, títulos, do tempo...

Não quero ser melhor que ninguém. Quero ser.

Nem quero fazer de uma forma genial. Quero fazer, sem tensão, aceitando e respeitando os meus limites.

Não sou especialista em felicidade. Nem quero ser. Para mim, felicidade e tempo são duas obsessões destrutivas.

A palavra 'felicidade' traz consigo tensão, cobrança, aparência. Obrigação. Fantasia. Ficção. E também arrasta uma corrente muito pesada chamada 'competitividade'.

Libertar-se do compromisso carrasco de ser feliz, contraditoriamente, já é ser feliz.